Contexto
Esbater uma fronteira para escrever sobre ‘novas realidades’ – esta é a premissa ‘Writing On New Realities’, um projecto dramatúrgico de colaboração internacional entre A Turma (Porto) e a Galata Perform (Istambul), que se desenvolve ao longo de dois anos através de laboratórios de criação e residências artísticas em ambos os países. Iniciado com a primeira residência artística em outubro de 2023, o projecto desafiou os dramaturgos António Afonso Parra e Tiago Correia (A Turma) e Ferdi Çetin e Yeşim Özsoy (Galata Perform) a escrever uma peça partindo da premissa "novas realidades que vivemos hoje" e da procura de um teatro que esteja além do conceito de fronteira. Foi assim que nasceram Fumo, de Tiago Correia, A Experiência, de António Afonso Parra, Delirium Aksak, de Yeşim Özsoy, e Adormeci em Frente à Televisão a Pensar na Origem da Propriedade Privada, Acordei Com a Voz do Meu Pai, de Ferdi Çetin. As peças portuguesas são apresentadas a 23 de Novembro, no âmbito do IO International Theatre Festival, em Istambul, e a 7 de Dezembro será a vez de apresentar as peças turcas em Portugal, sob a forma de leituras encenadas, dirigidas pelos dramaturgos e encenadores portugueses, no âmbito do encontro da União de Teatros da Europa em parceria com o Teatro Nacional São João. Todas as peças têm tradução de Bengi de Sá Matos Paixão.
Ao longo das últimas semanas, conversei com cada um dos dramaturgos sobre a peça desenvolvida para este projecto, o que culminou num conjunto de quatro entrevistas, agora publicadas no Jornal d’ A Turma.
Fumo acontece no dia em que a redação de um projecto de jornalismo de investigação independente se despede daquela que foi a sua primeira casa, Carolina regressa após uma longa ausência. O seu regresso vai confrontá-la com o novo paradigma do jornal e levantar o véu sobre vários e delicados assuntos pendentes. Uma peça sobre liberdade de imprensa e valores fundamentais, no seio de um grupo em que os laços profissionais se confundem com íntimas relações de amor e amizade e em que cada um lida, à sua maneira, com um trauma recente que os atingiu a todos.
Conversei com Tiago Correia, a propósito desta peça – uma conversa que se lê abaixo.
Entrevista
Ana – Fumo foca-se num projecto de jornalismo independente que vê o futuro ameaçado. Como é que chegaste até a este tema e qual a sua urgência?
Tiago – Esta ideia nasceu há algum tempo. O Writing On New Realities, no âmbito do qual esta peça foi escrita, é um projecto que começou a ser pensado em 2022, quando a minha peça Turismo – que falava sobre gentrificação e a obsessão turística, foi traduzida e lida através de uma leitura encenada pela companhia Galata Perform, em Istambul (Turquia). Foi nesse momento que fui à Turquia pela primeira vez e que começámos a desenvolver este projecto de nova dramaturgia. Nessa leitura encenada em Istambul, os actores, o público e as pessoas que estavam envolvidas disseram que parecia que a peça [Turismo] tinha sido escrita lá – embora a Turquia não tenha feito parte da pesquisa para a escrita dessa peça, que se passava numa cidade imaginada, no Sul da Europa. De alguma maneira, isso tocou-me e fez com que eu ficasse a perceber um pouco melhor o contexto social e político da Turquia, nomeadamente os Gezi Park Protests, que se iniciaram em Istambul, em 2013 – inicialmente motivados por uma questão ambiental, por causa de um parque que ia ser destruído para aí ser levantado um centro comercial, e que se espalharam por todo o país, e aos quais toda a população se juntou. Até que começou a repressão policial, marcada pela violência e pela prisão de jornalistas, activistas e artistas, que foi tomando uma escala muito grande e assustadora, sobretudo se pensarmos que é um país europeu e que está tão perto.
O projecto integra dois dramaturgos portugueses e dois dramaturgos turcos, para escrever sobre ‘novas realidades’, a partir de uma observação sobre o presente; sobre o mundo contemporâneo, mas não havia a obrigatoriedade de as peças serem sobre o Porto ou Istambul. A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa foram logo duas questões que me chamaram particularmente. Somos criadores e vivemos num país livre, onde, supostamente, podemos escrever e falar sobre aquilo que queremos – o que parece acontecer em todas as democracias, mas talvez não seja bem assim; talvez sejamos condicionados de muitas maneiras, mais directa ou indirectamente, e as coisas que nós fazemos sejam influenciadas por esses condicionamentos. Também por isso é que a extrema-direita foi ganhando tanto terreno na Europa, e essa é também uma das minhas grandes preocupações – desde logo porque pode significar o fim da minha actividade. Então, de diferentes maneiras tenho tentado que as minhas peças reflictam sobre isso. O Salto (2023), por exemplo, reflectia sobre um grupo de jovens que, durante a ditadura portuguesa, tentavam fugir do país. Recordava-se um pouco esse nosso passado-recente para perceber de que forma essa fuga está também a acontecer tão perto de nós, noutros países; para nos questionarmos sobre como é que é possível que, nesses países, os governos sejam eleitos de forma aparentemente democrática. Como é que chegamos a isso? A forma como consumimos informação é talvez a grande causa disso, porque absorvemos mais informação do que nunca, mas ela acontece de uma forma também muito mais superficial. Portanto, há também aqui a questão do papel da imprensa, da forma como a informação chega ao público – ela que é dominada por interesses económicos e políticos que filtram a informação. Algo que já vem de antes – Chomsky, por exemplo, falava sobre a forma como, enquanto estamos numa ditadura, o Estado controla as pessoas através da violência e da repressão; e de como, numa democracia, as pessoas passam a ser controladas através da informação.
No caso de Fumo, o meu objectivo não era que fosse uma peça apenas sobre a Turquia, até porque a pesquisa foi muito mais ampla. Queria tentar levar os temas a um extremo e perceber, através de um projecto de jornalismo de investigação independente, orientado por princípios como o da investigação lenta, como é que se questiona a ameaça com a qual esses projectos se confrontam para sobreviver e de que forma é que podem ter de se ajustar para sobreviver – tendo ou não de abdicar de determinados princípios. Queria escrever algo que não fosse indiferente em Istambul e que fosse uma homenagem a todos aqueles que lutam pela liberdade de imprensa e que em nome dela se sacrificam.
Ana – Deixas em aberto para onde é que estes jornalistas partiram em investigação, como se este lá fora pudesse ser cá dentro. Escreves que “eles tinham publicado aquela investigação sobre a demolição do bairro mais antigo da cidade”, mas não nomeias a cidade. Este cuidado em não circunscrever territorialmente a ação, em evitar uma fronteira, foi (é?) uma intenção?
Tiago – Mais importante que circunscrever a peça a um país, dizer que fala de um projecto de investigação português, que foi fazer uma investigação num lugar específico do estrangeiro, interessa-me mais perceber os seus conflitos, as suas problemáticas – porque elas podem acontecer noutros lugares onde se assiste à perseguição de jornalistas e até ao seu homicídio.
E há outros países onde a perseguição é feita de outra maneira: através de despedimentos, de assédio laboral, ou até da prisão; lugares onde os jornalistas, sem estarem em direito de defesa, são acusados de propaganda terrorista; lugares onde se criam leis para controlar a imprensa ou onde os governos intervêm directamente nos jornais; se multam grandes grupos de media com taxas, impostos na escala dos milhões que obrigam a cortar suplementos, a reduzir o número de páginas de jornal, o que leva a despedimentos. A própria crise do papel é também um problema. Estas são situações que acontecem de diferentes maneiras em vários países e aquilo que me interessava era trazer tudo isso para esta realidade: tentar que a peça tivesse uma intemporalidade ou uma universalidade que pudesse ser falada em diferentes países, em diferentes companhias.
“Por muito que eu queira que isto seja entendido de uma forma profunda pelo público turco e pelos artistas turcos que fizerem esta peça, espero que ela seja mais ampla e que fale sobre todos os países que estão com governos autoritários e que veem a sua liberdade reprimida.”
Ana – Entre 2017 e 2021, mais de 200 jornalistas turcos foram presos na Turquia. Em 2013, a Repórteres Sem Fronteiras, uma Organização Não Governamental (ONG) focada na proteção do direito à liberdade de imprensa, situava a Turquia no lugar 149 entre 180 países no que toca ao condicionamento da liberdade de informação. Em 2015, o Bianet – o único jornal independente e de oposição ao regime turco, registava um aumento de intimidações e perseguições feitas a jornalistas. Aliás, a 3 de Setembro, saiu uma notícia a dar conta das ameaças de morte que o jornalista de investigação Murat Arigel estava a ser alvo – e que começaram no ano passado, em Novembro de 2023.
Sendo esta peça em breve encenada por criadores turcos, para os quais esta realidade é mais tangível, e apesar de deixares em aberto a circunscrição geográfica onde estes jornalistas vão em investigação, houve, de alguma maneira, esta preocupação em criar um elo concreto com a situação que se vive na Turquia? Se sim, que desafios sentiste durante a escrita da peça, nesse equilíbrio entre mantê-la geograficamente aberta e ter essa preocupação turca por trás?
Tiago – Fui muito influenciado pela realidade turca. No fundo foi como se eu tentasse escrever uma peça que eles não poderiam escrever. Mas não quero que aquela companhia tenha problemas nem que a peça seja proibida. Acho que o facto de ser um criador português me dá a liberdade de poder escrever esta peça. Em Portugal, a questão da liberdade de imprensa parece algo muito distante. Acho que não temos noção de como a ameaça à liberdade de imprensa é real noutros países. Ao mesmo tempo, sou um criador português e vou encenar esta peça, portanto queria que ela fosse, em primeiro lugar, sentida também pelo público português. Que fizesse sentido cá. Então, descobri este dispositivo baseado num grupo de jornalistas portugueses que fazem uma investigação num outro país estrangeiro, e para isso inspiro-me muito sobre a realidade turca, levada a um limite. Para nós é uma coisa distante, mas para eles é tocar numa ferida. Fi-lo com essa consciência, na esperança de que seja uma homenagem e uma oportunidade para reflectir sobre este assunto. Por muito que eu queira que isto seja entendido de uma forma profunda pelo público turco e pelos artistas turcos que fizerem esta peça, espero que ela seja mais ampla e que fale sobre todos os países que estão com governos autoritários e que veem a sua liberdade reprimida.
“Esta é a questão principal da peça: como é que cada membro do projecto lida individualmente com esse trauma colectivo e de que forma é que os interesses individuais se sobrepõem aos interesses comuns. O primeiro passo foi tentar perceber a realidade portuguesa e o que é isto de sermos contrapoder numa democracia ou num país em que parece que somos um pouco mais livres por não vivemos uma perseguição ao nível da que vivemos num passado que não é assim tão distante).”
Ana – Sobre a pesquisa para Fumo: apesar de não haver referência a casos específicos ou a lugares em particular, que elementos do real – factos, histórias ou acontecimentos com os quais tomaste conhecimento te influenciaram na escrita da peça?
Tiago – Além da questão da liberdade de imprensa, a peça centra-se no seio de um pequeno projecto jornalístico que, na sua essência, é parecido com uma pequena companhia independente: esta luta por espaços de trabalho e por financiamentos para podermos fazer um trabalho autónomo foi para mim uma forma de espelhar nesse projecto jornalístico independente coisas que também eu vivi na minha companhia, na direção d’ A Turma: as aventuras por que passámos, desde a mudança de espaços à procura de financiamentos; de que forma é que nos conseguimos manter independentes e o que é isso de nos mantermos independentes, sendo que precisávamos de financiamentos; de que maneira é que fomos crescendo ao longo dos anos, numa linha fiel aos nossos princípios. Além disso, estes são projectos em que as pessoas, principalmente as fundadoras, trabalham e estão juntas há muitos anos, têm relações de amizade, por vezes romances, e é tudo uma coisa só – a vida e o teatro, ou a vida e o jornalismo são uma coisa só. Nesse sentido, há um espelho entre os artistas e os jornalistas, e há uma ameaça que surgiu também da conversa com jornalistas: nesta vida precária e nesta ausência de rotina, como é que é possível constituir uma família? Parece que estamos condenados a não poder ter uma família; como se fosse estranho fazê-lo ou, ao fazê-lo, estivéssemos a dizer: “vou deixar de ser jornalista de investigação independente” ou “vou deixar de escrever peças de teatro e arranjar um trabalho mais tranquilo e estável”. Numa realidade onde os trabalhos são cada vez mais precários e as pessoas são cada vez mais bem formadas, mas acabam por não fazer aquilo que querem, são dúvidas que nos tocam cada vez mais. Por isso, queria que as questões íntimas e esta forma pessoal de estar no trabalho estivessem presentes na peça. Inspirei-me em projectos portugueses, turcos e de outros países.
O primeiro passo foi tentar perceber a realidade portuguesa e o que é isto de sermos contrapoder numa democracia ou num país em que parece que somos um pouco mais livres por não vivemos uma perseguição ao nível da que vivemos num passado que não é assim tão distante).
O Fumaça, que é um órgão de investigação independente, dissidente, transparente e contrapoder, deixou-me passar um dia na redação, onde assisti a uma reunião geral e editorial. Foi muito interessante perceber a forma horizontal através da qual tudo é feito e decidido e pensar de que forma é que isso é aplicado na companhia: lá, cada jornalista escolhe o tema das suas investigações, e aqui cada criador escolhe qual é o projecto que quer desenvolver. Essa horizontalidade é uma espécie de utopia que eles concretizam; uma premissa da qual eles parecem não querer abdicar.
Além do Fumaça, há o projeto Setenta e Quatro que fechou recentemente – como é possível que um projecto assim, de escrutínio aos poderes, de trabalho de fundo, tenha terminado? De que forma é que estes projectos – mesmo em Portugal, estão ameaçados, e por que é que estão ameaçados? O que é que aconteceu a esses jornalistas do Setenta e Quatro?
Nesta peça tentei projectar uma espécie de pesadelo que pudesse acontecer a um projecto assim e que está assente num trauma que é vivido por esse projeto de jornalistas que morrem durante uma investigação: como é que cada um lida com esse trauma e de que forma é que o projecto prevalece depois disso – como é que eles continuar a vislumbrar esse risco ou reformulam alguns princípios com os quais têm trabalhado ao longo de tantos anos. Esta é a questão principal da peça: como é que cada membro do projecto lida individualmente com esse trauma colectivo e de que forma é que os interesses individuais se sobrepõem aos interesses comuns.
Ana – Uma das variáveis que vem condicionando o jornalismo – e que é talvez o maior sintoma das pressões financeiras e editoriais que vêm aprisionando a maioria das redações, é o tempo. Pegando nessa ponte que estabeleces entre o Fumaça e A Turma, em particular com a escrita de Fumo, onde há uma parte em que falas sobre a importância do tempo, queria que reflectisses sobre esta condição.
Tiago – Uma das grandes conquistas do Fumaça é o facto de terem conseguido uma autonomia a um ponto que os permitiu ter projectos de investigação que estão a desenvolver há seis anos – uma coisa impensável para a escrita de uma peça, mas que não devia ser. Eu posso imaginar o que seria poder estar seis anos só a desenvolver uma peça. Talvez seja tempo a mais, mas normalmente aquilo que acontece na criação artística em Portugal é que as companhias e os artistas fazem peças num mês / num mês e meio – às vezes partem de textos que já estão escritos, dessa base, mas muitas vezes fazem peças originais, de criação colectiva ou através de novas dramaturgias. Esta também foi a minha realidade durante muitos anos: não havia meios para prolongar muito a criação no tempo; eram pesquisas de duas semanas, às quais se seguiam três semanas a escrever a peça intensivamente e por fim mais três semanas ou um mês para concretizar um espectáculo. Essa é uma coisa que ameaça o nosso trabalho, porque para acontecer é um milagre e é um milagre que pode acontecer várias vezes, mas também pode acontecer que não seja possível e que se falhe redondamente. Por outro lado, o público não tem nada a ver com isto – o público vai ver um espectáculo e não vai querer saber se o artista esteve duas semanas a escrever a peça ou se passou um ano a estudar sobre um tema. Então, quando as companhias começam a ser financiadas, há também a pressão de terem de fazer muito com pouco. Pode-se cair neste jugo de os resultados terem de ser apresentados. Os espectáculos têm de acontecer. Acabamos por estar a trabalhar contra nós próprios.
“Podem tirar-nos tudo, mas não nos podem tirar o tempo, que é fundamental para nos descobrirmos e para descobrirmos aquilo que queremos dizer.”
Ana – Parece que para que sejamos visíveis temos de mostrar trabalho, quando na verdade um espectáculo – a concretização última, material, advém de um moroso trabalho invisível, silencioso, escondido.
Tiago – Até porque é necessária uma reciclagem: quando escrevemos uma peça ou fazemos uma criação teatral, vivemos intensamente nesse universo, sonhamos com ele, estamos completamente absorvidos por ele. Quando acaba uma criação teatral ou a escrita de uma peça, há um quase-esgotamento; é como se estivéssemos secos, e é necessário viver, reciclar aquilo que temos cá dentro para voltarmos a conseguir entrar noutro universo – ter essa coragem, essa força, essa energia, e descobrirmos o que temos para dizer. Essa tem sido uma preocupação minha n’ a Turma, nos últimos anos – muito porque a companhia se tem dedicado à nova dramaturgia, de que somos autores (os nossos espectáculos partem de textos originais). Quando tínhamos de escrever uma peça e encená-la no mesmo ano, a pressão era asfixiante. Então, apesar de todos os anos haver novas encenações, já há alguns anos que dividimos as criações ao longo de um biénio, permitindo que tenhamos um ano de residência artística e escrita da peça, altura em que reunimos com criativos e começamos a pensar o que é que o projecto vai ser, o que é que o texto vai ser, como é que o espectáculo se vai concretizar; e um segundo ano no qual partimos para a criação teatral pura e dura, já com o texto escrito – o que permite uma maturação ao longo de um ano, tempo de reflectir sobre o projecto, para fazer pesquisa, etc. Esta repartição foi uma grande conquista e tem sido fundamental. Vou estrear uma peça no próximo ano e também terei um projecto de desenvolvimento de pesquisa e de residência para uma peça que irei escrever no ano seguinte. Isto sempre baseado nisso que estás a dizer – podem tirar-nos tudo, mas não nos podem tirar o tempo, que é fundamental para nos descobrirmos e para descobrirmos aquilo que queremos dizer.
Ana – Falávamos há pouco sobre maneiras possíveis de contrapoder dentro de uma democracia. Apesar da democracia em que dizemos viver, há pressões que a constrangem – como o ritmo desenfreado que nos obriga a mostrar provas de trabalho e a contribuir para o mito da produtividade. Exigir tempo para o trabalho invisível é talvez uma maneira de resistirmos; de contrapoder?
Tiago – Numa das primeiras entrevistas que o Fumaça faz, ao Daniel Oliveira, ele refere que contrapoder, em democracia, não existe. Que podemos manifestar-nos nas ruas, mas as ruas têm uma lei. E que essa lei é gerida pelo poder. Esta é uma ideia muito polémica, mas que eu acho muito interessante. Quando perguntei ao Fumaça o que é que eles achavam sobre isto, o que é isto de fazer um trabalho contrapoder em democracia, o que eles disseram foi: “o que não achamos é que estejamos numa democracia.”
Ana – Há um momento na peça em que escreves que ‘o jornalismo só é verdadeiramente contrapoder se vivermos num regime autoritário.” E que há uma espécie de sensação de que “o nosso trabalho aqui nunca teria o mesmo impacto.” Apesar disso, falávamos de início sobre as pressões que nos constrangem até numa vida aparentemente democrática e que nos forçam a agir nesse ‘contrapoder’.
Tiago – Apesar de diferentes maneiras, querer transformar a sociedade, fazer a diferença ou tornar o mundo num lugar melhor são preocupações tanto de jornalistas como de artistas. Muitas vezes sentimos que as coisas que fazemos não mudam nada; que não têm impacto nenhum. Respondo sempre a essa questão através da minha própria experiência enquanto público, principalmente de teatro, com base na forma como o teatro me mudou e de como determinados espectáculos me transformaram. Acredito que não é ao dizermos ao público directamente em que é que ele deve acreditar, ou de que forma é que o mundo deveria ser, que se transforma a sociedade. Sempre que me tentaram fazê-lo, desinteressei-me. Não é através desse autoritarismo que acredito na educação.
Acho que principalmente os jovens artistas, os jovens jornalistas e os que têm uma veia mais revolucionária ou radical, vivem essa urgência, essa ânsia de transformar a sociedade. Isso é muito apaixonante e bonito; também já passei por isso. Aquilo que tento colocar nesta peça é que apesar de tudo aquilo em que acreditamos temos de gerir muito bem as nossas expectativas para conseguirmos trabalhar com os outros e fazer o nosso caminho. Na peça, há um jornalista que é tão implicado na causa, que quer tanto contribuir para mudança da sociedade, que fica tão impressionado com a forma pela qual os seus colegas estão a ser oprimidos nesta investigação – ao ponto de começar a desenvolver uma investigação precisamente sobre liberdade de imprensa. Ele sente que o trabalho dos jornalistas que ele próprio está a investigar é que é um trabalho válido – não o trabalho que ele está a desenvolver sobre liberdade de imprensa, mas a luta que eles fazem, para o qual colocam as suas vidas em causa; exposta a ameaças e a despedimentos – isso é que é um trabalho verdadeiramente revolucionário. Isto impressiona-o, e ele começa a ‘vestir a camisola’. É daí que vem esta frustração, como se em Portugal ele nunca pudesse levar a um extremo aquilo de que ele é capaz; como se ele tivesse muito mais a dar à causa, a dar à revolução. Isso depois acaba por ter consequências.
Ana – Falavas há pouco sobre a relação entre o trabalho e a vida; em como as coisas se confundem ou se relacionam ao ponto de ser quase difícil separá-las, distingui-las. Fumo existe também um conflito amoroso. Porque é que achaste importante contemplar também esta dimensão amorosa, este conflito, esta humanização no enredo?
Tiago – Na verdade, isso acontece na peça, mas é secundário. Há um personagem que tenta descobrir qual é a causa do afastamento de outro colega, mas acaba por não ver o fundamental – esquece-o à medida que acredita que as razões do afastamento são outras que não a principal.
Ele sente uma grande admiração por ela a todos os níveis, mas era um amor impossível. Ele refere que é por ela que está ali, a tentar manter o projecto. Talvez porque ele não seja capaz; talvez porque ele sempre se tenha sentido inferior a ela enquanto jornalista. Este conflito dá uma camada / um constrangimento extra ao conflito, embora seja um falso conflito. Porque a questão não é essa. Porque num processo de luto como aquele em que eles estão, isso transformou-se numa impossibilidade. É uma relação de mais de 10 anos em conjunto, é normal que se passem por coisas que tenham mais ou menos importância, e a vida continua.
Ana – A peça termina de uma maneira que remete para uma certa ideia de destino, de algo fechado, inelutável. Como se não pudesse ser de uma outra maneira. Como se estivéssemos dependentes de um rumo traçado e a nossa vontade não fosse suficiente para inverter a ordem das coisas. Foi algo que quiseste transmitir?
Tiago – A peça fala de um projecto que, depois de passar por um trauma, teve de se reformular. E que, de repente, teve um ‘boom’ e um mediatismo nacional e internacional enorme, muito por conta desse acontecimento traumático. Aí, eles tiveram de decidir entre aproveitar ou não aproveitar esse mediatismo; pensar sobre que é que poderiam fazer nesse momento ao projecto; de que forma é que teriam de se adaptar e garantir a sobrevivência – a deles e a do projecto, e em que condições é que queriam trabalhar – condições de trabalho que fossem dignas. O que é que nós queremos agora? Queremos correr mais riscos ou sustentar melhor este projecto e garantir melhores resultados, com mais pessoas a trabalhar, mais jornalistas (até porque perderam colegas), tiveram de contratar novas pessoas – pessoas que não são como eles, como os fundadores; não vestiram a camisola da mesma maneira; são pessoas que vêm refrescar o projecto, mas não têm as mesmas motivações que os outros, pelo que o projecto vai mudar. O que acontece é que o projecto cresce muito, e de repente tem a oportunidade de sair daquele buraco onde estavam; daquela cave clandestina onde eles trabalharam durante muitos anos e ir para o centro da cidade, para um espaço novo e impecável, com grandes condições, onde cada um agora já pode ter uma secretária para trabalhar. No último dia do espaço antigo, quando estão a fazer as mudanças, aparece a Carolina, que já não está lá há muito tempo, para vir buscar as suas coisas e para se despedir daquele espaço. A vinda da Carolina vai abanar aquilo tudo. Vai pôr em causa esse caminho que o projecto tomou. Ela podia trazer uma mudança, mas tudo fica ainda mais trágico quando se percebe que a vinda dela não muda o destino do jornal. Esta é uma questão deixada a nós próprios – o que faríamos nós? O Setenta e Quatro acabou. Se calhar, se se tivesse reformulado teria continuado – mas será que ia continuar a ser o mesmo projecto? Eu perguntava ao Fumaça: “se um dia um grande jornal vos quisesse integrar como equipa de investigação própria, com a sua independência, mas como parte de um jornal maior, vocês aceitavam?” e eles responderam: “não. Se um dia chegássemos a isso, acabávamos.” As pessoas envelhecem e, ao fim de 10 ou 20 anos, aquilo é a vida delas, e acabar não é assim tão fácil. Felizmente, há ainda pessoas fiéis aos seus princípios e dispostas a arriscar.