Contexto
Esbater uma fronteira para escrever sobre ‘novas realidades’ – esta é a premissa “Writing On New Realities”, um projecto dramatúrgico de colaboração internacional entre A Turma (Porto) e a GalataPerform (Istambul). Desenvolvido ao longo de dois anos através de laboratórios de criação e residências artísticas em ambos os países, o projecto iniciou com a primeira residência artística em Outubro de 2023, e desafiou os dramaturgos António Afonso Parra e Tiago Correia (A Turma) e Ferdi Çetin e Yeşim Özsoy (GalataPerform) a escrever uma peça partindo da premissa "novas realidades que vivemos hoje" e da procura de um teatro que esteja além do conceito de fronteira.
Foi assim que nasceram Fumo, de Tiago Correia; A Experiência, de António Afonso Parra; Delirium Aksak, de Yeşim Özsoy, e Adormeci em frente à televisão a pensar na origem da propriedade privada, acordei com voz do meu pai, de Ferdi Çetin. As peças portuguesas foram apresentadas a 23 de Novembro, no âmbito do IO International Theatre Festival, em Istambul, e a 7 de Dezembro foi a vez de apresentar as peças turcas em Portugal, sob a forma de leituras encenadas, dirigidas pelos dramaturgos e encenadores portugueses. O evento decorreu no âmbito do encontro da União de Teatros da Europa em parceria com o Teatro Nacional São João. Todas as peças têm tradução de Bengi de Sá Matos Paixão.
Ao longo das últimas semanas, conversei com cada dramaturgo sobre o trabalho que desenvolveram para este projecto, o que culminou numa série de quatro entrevistas, agora publicadas no Jornal d’ A Turma.
Introdução
Acordaste, tens a certeza disso. Sabes que acordaste porque a chávena do café está vazia e isso é sinal de que o bebeste; a camisa que tens no corpo está engomada – fizeste-o hoje de manhã, pouco depois de acordares, com certeza. Com a mesma certeza com que sabes tê-lo feito ontem, anteontem, e nos outros dias em que repetes um mesmo ritual. O teu corpo é a extensão da cadeira onde estás sentado à frente do computador; é através dele que trabalhas, abrindo de quando em vez uma nova janela, porque é irresistível o anúncio da terapia de ultimo modelo, como se estivéssemos a falar de um carro a um preço imperdível; o algoritmo que sabe que precisas mesmo de despertar e por isso te berra ao ouvido, ainda que tu garantas que já o estás. Abres ainda outra janela, onde lês as notícias que anunciam um dilúvio que não acreditas ser possível, e por isso negas o dilúvio, negas a notícia, negas a certeza dos que acreditas estarem enganados.
Dentro da notícia que afinal não fechas, como se afinal acreditasses que há nela um vestígio de verdade, surge-te outra janela, e ao fundo vês mesmo um dilúvio. O dilúvio de que falava a notícia – ei-lo agora, dentro dela. Visível e palpável. Finalmente, perguntas-te pela primeira vez se terás mesmo acordado, ou se isto é tudo um sonho; vês-te pela primeira vez como presa desse limbo ténue. A dormir ou acordado, tu sabes que vês o dilúvio ao fundo, aproximando-se, e consegues ainda nesse estado de vigília perguntar a ti mesmo: quantos de mim caberão no diâmetro de uma onda assim? Não sabes responder, por isso esqueces logo; mas sabes que é um número demasiado grande para que possas continuar perplexo a olhar o dilúvio aproximando-se, sem nada fazer. Sentes então o instinto na ponta dos dedos; nem um dilúvio é capaz de arrebatar-te ao ponto de o corpo esquecer o gesto mecânico: vais ao telemóvel e clicas na app de meditação que nunca te deixou mal. Ela não funciona, e tu sabes que já nem correr vale a pena. O dilúvio vem contra ti e tu permite-lo, porque reconheces agora que és parte de toda esta água que o formou; ele atingia-te já antes de agora o veres, mas estavas tão ocupado a lidar com as tuas importantes insignificâncias, que a única coisa a fazer era ignorar as notícias que acusavas de falsas. O teu corpo enrola-se agora na água de que fazes parte, e tu vais com ela, porque a não pudeste impedir.
E ainda achas que acordaste?
De olhos fechados, talvez para ver com maior clareza; sem certeza nenhuma do que é o sono, mas reconhecendo-o como o lugar que prefiro para esquecer o egoísmo e a nossa posição de passivos espectadores de dores que apelidamos de alheias, construo esta imagem, depois da leitura de Delirium Aksak, peça de Yeşim Özsoy. Sobre ela conversei também com a dramaturga, uma conversa que abaixo partilho.
Ana – Quando foste desafiada a escrever sobre ‘novas realidades’, quais foram os primeiros temas que te surgiram? Como foi o exercício de juntá-los numa só peça?
Yeşim – Na nossa companhia, estamos focados no tema das novas tecnologias e na interdisciplinaridade. Temos realizado este tipo de projectos através de residências de criação e ao trazer a Istambul dramaturgos do exterior, para que possam traduzir peças, conduzir workshops e pensar sobre teatro a partir de outra perspectiva. Assim, o que desenvolvemos é local e feito na nossa língua, mas, ao mesmo tempo, também com a linguagem universal que é a do teatro. Acho que este tema no qual nos concentramos, sob o título ‘Writing on New Realities’, ressoa mais com essa universalidade do projecto, porque significa que há uma nova realidade que precisamos de compreender e pensar – não só a nossa, mas do mundo. Então, quando comecei a pensar no título principal e no que ele significa para a minha vida, o meu país, a minha geografia e também para o mundo, foram muitos os assuntos que começaram a ressoar e a vir à mente; assuntos que precisamos de explorar – especialmente agora, neste momento da História em que tantas coisas estão a acontecer – principalmente no mundo da tecnologia ao qual estamos expostos, e que não nos afectam tanto a nós como a outros países, simultaneamente – e o mundo, sucessivamente. Enquanto humanos, o que fazer?
A par disso, estamos expostos a uma nova onda de fascismos de direita e ditaduras que nos chegam sob a aparência de uma democracia. Há também um movimento feminista a considerar. Relaciono-me com todas estas questões porque vivo num país onde há um governo de direita há mais de 20 anos e que se tem tornado cada vez mais conservador. O aumento das democracias conservadoras que evoluem para ditaduras nos Estados Unidos da América (EUA), na Rússia, na Turquia, na Índia, na Hungria e outros países europeus, por exemplo, afecta-me profundamente, emocionalmente, quando penso na minha vida e no futuro dos meus filhos. Além disso, as mudanças na Inteligência Artificial (AI) também irão afectar-nos. Aliás, já começaram a ter impacto nas nossas vidas e irão afectá-las cada vez mais, mesmo que não estejamos plenamente conscientes disso, ainda.
Na verdade, esta peça é o regresso a outra que escrevi, chamada Aksak Istambul Hikayeleri. É geralmente traduzida como Limping Tales from Istanbul, porque ‘Aksak’ significa ‘algo / alguém que coxeia’. Senti que devia regressar a esta ideia, mas desta vez focando-a não apenas na realidade de Istambul; queria torná-la mais ampla. É claro que ela parte da nossa realidade, mas queria tentar alcançar outras realidades geográficas. Em particular no Sul da Turquia, há uma guerra constante nas fronteiras, o que nos afecta a nós – e, de certa forma, afecta toda a gente no mundo. Na peça, há uma personagem que tenta conseguir uma arma, mas… as guerras não acabarão a menos que todos sintam a mesma dor, as mesmas coisas. Quando se pensa nisto, parece algo muito simples. A imigração também é uma realidade. Até no nosso país: temos um grande fluxo migratório, oriundo da Síria, por exemplo. Ao mesmo tempo, somos vistos como "uma terra de transição; o mundo ideal da Europa".
Ana – É comovente perceber que mesmo que história se passe numa realidade tão distante, há muitos pontos de encontro com o nosso contexto socio-político, como a ascensão da extrema direita e os direitos das mulheres. Essas também são questões aqui presentes, mesmo que sob uma aparente democracia. Há ainda tantas mulheres esquecidas e silenciadas que precisam de ser ouvidas. Há uma parte na peça onde escreves: “as mulheres desta terra estão sempre sozinhas”. Queria pedir-te que falasses um pouco mais sobre como é encarado este tema na Turquia.
Yeşim – É sempre uma luta, mesmo quando és bem-sucedida. Por exemplo: geralmente sou descrita como uma mulher intelectual de Istambul, porque construí a minha própria companhia de teatro, sou directora, escrevo peças e tornei-me presidente de uma organização sem fins-lucrativos. Há também mulheres de negócios e muito poderosas, mas a questão é: de alguma forma, estás sempre sozinha, porque a sociedade não está alinhada com o sucesso ou com a ideia de uma miúda oriunda de uma família do Leste que pense de maneira diferente ou queira estudar mais. Conheci uma mulher que veio fazer a limpeza no escritório e me contou: “somos seis filhas e dois irmãos a dizer que não podemos receber nada da herança do nosso pai”. Por vezes, até a tua vida pessoal é afectada por seres forte ou bem-sucedida. É claro que não podemos comparar essa realidade com a de uma miúda vinda de uma família tradicional, no seio da qual é silenciada e luta; mas a luta é sempre essa: tens de fazer tudo sozinha; criar o teu próprio sistema de apoio. Latife Tekin, uma aclamada romancista, disse algo como: "as mulheres Amazonas lutaram contra os homens e perderam." Todas as religiões abraâmicas têm uma mesma raiz que não é generosa para com as mulheres; que esquece muitos aspectos relacionadas com a ancestralidade das mulheres. É poderoso pensar no facto de que é a mulher quem cria; quem dá à luz; quem elevou toda a humanidade até ao lugar onde estamos.<o :p></o>
« Mesmo sob opressão, somos livres para fazer e dizer o que quisermos, mas o que acontece é que há artistas e jornalistas presos por causa do que escrevem. Parece que és livre: ninguém pode dizer que as mulheres são obrigadas a cobrir a cabeça, a agir de forma mais conservadora ou a ser mais orientadas à família. Não há nenhuma lei que diga isso, mas há uma pressão social. »
Ana – Maria diz que vivem “num bairro conservador, em Fatih”, onde “todos se vigiam, todos espreitam para dentro das casas uns dos outros. Até se sair do bairro, não se anda livre, sente-se o peso de todos os olhares. E quando se sai do bairro, todos os olhos continuam postos nas tuas costas.” Esta vigilância é algo que se sente na Turquia? Como é que ela é imposta, sentida?
Yeşim – Há dois bairros: um é bastante tradicional, onde as pessoas usam véus e até burcas; o outro é Etiler, um bairro muito modernizado, localizado numa zona residencial e comercial de Istambul, fora da parte histórica. A sensação de estares a ser vigiado vem da ideia de que, faças o que fizeres, estás permanentemente a ser observado. No Irão, há polícia nas ruas a vigiar as mulheres para que usem véu. Na Turquia não é assim: somos ‘um país no meio’ – o único país secular onde a maioria da população é muçulmana. Mesmo sob opressão, somos livres para fazer e dizer o que quisermos, mas o que acontece é que há artistas e jornalistas presos por causa do que escrevem. Parece que és livre: ninguém pode dizer que as mulheres são obrigadas a cobrir a cabeça, a agir de forma mais conservadora ou a ser mais orientadas à família. Não há nenhuma lei que diga isso, mas há uma pressão social. Istambul é uma cidade onde consegues ver todos os fragmentos da Turquia: 20 milhões de pessoas numa cidade que é como a representação do país inteiro. Quando olhas para o oeste da Turquia, tens a região do Egeu e o Mar Mediterrâneo. Se lá fores, percebes que as pessoas não são muito diferentes dos nossos vizinhos gregos, por exemplo. Estão todos a beber e a divertir-se; é esta a maneira de estar na vida. Mas quando vais para Leste, para a fronteira com a Síria, já é outra história. Cada lado da Turquia é uma espécie de mosaico, algo que acontece particularmente em resultado do Império Otomano ter sido encolhido e transformado num único território, que é a Anatólia, e uma parte da Trácia, que inclui Istambul e seus arredores. Daí que consigas identificar diferentes estilos de vida a conviver em realidades paralelas.
(...) «esta chávena que tens na mão. Vieste à pastelaria e pediste um chá. Ou seja, não pediste a chávena; pediste chá. Estavas cansado e ias encontrar-te comigo. Quiseste passar o tempo e matar a sede. Mas não disseste: “Quero uma chávena.” Esta chávena, feita de material reciclado que contém plástico, foi-te trazida por um empregado que provavelmente teve de mudar de transporte pelo menos três vezes para chegar aqui ao trabalho. Agora estás a beber o chá que ele te trouxe. Enquanto houver chá e enquanto as pessoas o pedirem, haverá sempre uma chávena. A maioria das pessoas, que não pensam, não vai saber que a chávena que seguram, mesmo que pareça de cerâmica, contém plástico. Não vão saber que, enquanto esse plástico era produzido, outras pessoas de certeza que adoeceram, sofreram, ou que os oceanos e mares foram poluídos de uma forma irreversível, e que isso é um desastre. Não vão sentir que pode haver migrações e guerras por causa disso. Porque, nos poucos minutos livres das suas pequenas vidas, a única coisa que queriam era um café ou um chá. Quem é que pode imaginar que uma simples chávena pode levar a isto tudo?»
(Retirado de Delirium Aksak, de Yeşim Özsoy)
Ana – “Esperança” (ou a falta dela) parece-me ser uma das questões transversais nesta história. De certa forma, percebemos quais são as crenças de cada personagem em relação ao país, o que cada um ainda espera ou qual o grau de optimismo em relação à situação política. Como é que relacionarias a esperança com esta história?
Yeşim – Cada personagem tem uma perspectiva diferente. A política regional e mundial afecta-os, pelo que, provavelmente, eles têm visões distintas. Resumidamente, a peça foca-se na Arca de Noé e em histórias criadas à volta de um dilúvio, também citadas em Gilgamesh, nas tábuas de Atrahasis, nas tábuas da Babilônia, na Bíblia e no Alcorão. E termina de forma catastrófica. Chegámos a um ponto em que nos destruímos uns aos outros e o meio ambiente. Enquanto lidamos com os nossos pequenos e mesquinhos problemas, o mundo está a acabar. No geral, não parece haver esperança na peça, mas não a escrevi para dizer que ela não existe. Escrevi-a para criar uma consciência sobre o facto de que, enquanto estamos a lutar entre religiões, entre países, entre povos, o mundo está a acabar, e isso está a aproximar-se. O que fazer quanto a isso? Semelhante sucede com a metáfora da chávena de café: sentes que estás inocentemente a beber o teu café, de camisa vestida, a trabalhar ao computador e a tomar partidos nesta derradeira farsa de guerras e tragédias entre povos. Sentes-te mal com isso e fazes alguma coisa, mas isso acaba por não dar em nada. Ao mesmo tempo, é como se visses o dilúvio a vir contra ti, mas estás ocupado, a lidar com coisas tão insignificantes, se comparadas à história completa do mundo; ao que está a acontecer ao meio ambiente neste momento.
“Esta não é a nossa guerra: está tão longe. Porque é que eu me haveria de importar?”
Ana – É por isso que Abraão diz: “enquanto tudo isto está a acontecer, eu estou só a observar, / Incapaz de me mover, / E no fundo, quero gritar”.
Yeşim – Exacto. No fundo, “quero gritar”. É isso que sinto e que a maioria de nós sente por acharmos que “esta não é a nossa guerra: está tão longe. Porque é que eu me haveria de importar?” Todas as religiões encaram Abraão como pai e principal fonte da humanidade. Mas até ele se sente impotente em relação a isso: “criei uma coisa, mas não imaginei que fosse assim.”
Ana – A dado momento, Agar diz a Maria: “a única coisa que quero é um amor a sério” (...) Se calhar estás a pensar: “Com tantos problemas que há e a tua preocupação é o amor?” Mas é que, para mim, não há outro caminho neste mundo. Se eu quisesse construir um país, destruía os outros todos e apagava todas as fronteiras.” Qual é a importância desta bandeira para Agar?
Yeşim – Agar faz muitas referências a Mevlana, um poeta sufista. E fá-lo porque, no Sufismo, o amor não é apenas dirigido a outra pessoa – é também em relação à criação de tudo e a Deus. Assim, sentir é ser capaz de amar, simultaneamente. Desprezamos muito o amor entre as pessoas. Se o amor fosse uma religião, acho que estaríamos melhor.
Ana – Depois, há uma longa lista de inúmeros tipos de terapia, como terapia regressiva, terapia quântica, leitura online de borras de café, retiro xamânico, aromaterapia, terapia com óleos essenciais, numerologia, e por aí fora. Qual era a tua intenção com esta lista?
Yeşim – Criei essa lista ao longo de muito tempo, com base no que ia ouvindo de pessoas e amigos. Estes tipos de "espiritualismo" tentam ajudar as pessoas a organizar as suas vidas, para que não fiquem tristes, não se sintam deprimidas, não se desviem do seu caminho e acabem a roubar ou a matar. A questão principal é que esses novos espiritualismos parecem surgir na forma de ‘religiões da nova era’ e estamos a tentar curar-nos a nós próprios através desses sistemas de crença. Acho que estão a surgir pequenos tipos de religiões em todo o lado, entre as pessoas, às vezes em pequenos grupos, outras vezes em grupos maiores, mas a cura é uma jornada. Não estou a dizer que todas essas terapias são uma treta, mas, ao mesmo tempo, são demais; por vezes, as pessoas ficam demasiado obcecadas com as suas "meditações". Eu faço meditação, faço yoga e acredito no trabalho com a respiração. Mas acho que as pessoas modernas adoptaram estas novas formas de espiritualidade como a sua própria forma de cura, porque não se sentem conectadas a encontros e explicações religiosas sobre a vida. E, como estás "modernizado", as coisas que estão no Alcorão ou na Bíblia, no Cristianismo ou no Judaísmo, não se encaixam na tua vida. Então, tentas encontrar algum tipo de significado, uma conexão com Deus e com quem tu és e como és. E é assim que desvias a tua atenção para esses tipos de sistemas de crença. Mas, claro, alguns deles funcionam muito bem.
Ana – É a capitalização do espiritualismo, com aplicações a aparecerem a toda a hora, aos gritos: "clica aqui, instala esta app e vais mudar a tua vida."
Yeşim – Sim. Normalmente, se perguntares a um budista, ele faz a sua prática, mas não te cobra nada.
Ana – Mais à frente, Agar diz: “Nunca pensei que ia ouvir isso de si, Dona Sara. Todos podemos ser imigrantes de uma forma ou de outra, quando a vida nos obriga a isso. Podia ser a senhora. A senhora também podia ser uma “imigrante esfarrapada” se as circunstâncias a obrigassem a isso.” Relacionado com este pensamento, mais à frente, escreve-se sobre uma viagem ao Porto com uma amiga, Jasmim, que é “judaica, grega, turca, muçulmana e portuguesa.” Ela não fala português; ela tem um cartão de identificação português, um passaporte turco, cidadania canadiana e cabelo encaracolado.”
Yeşim – Quando olhamos para os nossos antecedentes, para o nosso background, percebemos que, de alguma forma, estamos todos ligados; somos apenas um. Esta ideia de países e nacionalidades está a separar-nos. Gosto da ideia de ter uma amiga assim, com múltiplas origens, com uma história que eu posso ouvir. Portanto, o que Abraão quer transmitir é que toda a humanidade está ligada. É absurdo que estejamos a tentar categorizar: Sabbatai, grego, judeu, português, turco, e por aí fora. Há muitas pessoas na Turquia que criticam a imigração e dizem que “precisamos de cuidar dos nossos próprios cidadãos”, e é assim que o fascismo cresce.
« Sou um turista no Porto.
Vagueio, vagueio, vagueio, vagueio…
Ah, ah, lugares tão bonitos, tão bonitos, tão bonitos…
Perdi-me entre latas de sardinha no mercado.
Os locais começaram a odiar turistas.
Porque há tanto interesse na sua cidade, que é bonita,
Os malditos turistas consomem o espaço para viver e respirar.
Por isso tentamos não falar muito alto,
Tentamos esconder que somos turistas. »
(Retirado de Delirium Aksak, de Yeşim Özsoy)
Ana – E o turismo, era um tema importante para ti?
Yeşim – Sinto que o turismo é um problema. Também em Espanha, onde estão a votar contra a entrada de turistas. Por vezes, a vinda de pessoas é algo demasiado destrutivo. Ao mesmo tempo, as pessoas que vêm não estão a sentir o destino como ‘terra natal’. Vêm para consumir e vão-se embora. Há tempos, falava com um amigo que trabalha em hotelaria e estava a participar num investimento turístico, e ele contou-me que a Turquia é o quinto país do mundo em termos de número de turistas e o oitavo em termos de gastos. Sentimos que estão a vir demasiados estrangeiros com dinheiro e que estão a comprar apartamentos. Também temos muitos turistas da Arábia Saudita e do Qatar, pessoas muito ricas. Por outro lado, sem o turismo não nos conheceríamos uns aos outros. É um problema bidirecional, não nos sentirmos uns aos outros e não nos compreendermos verdadeiramente. Trata-se de saber como é que as sociedades e as pessoas se devem considerar ou cuidar umas das outras, penso. E também sobre a forma pela qual o governo actua neste domínio.
Ana – Há também uma parte em que a Maria quer ajudar a Sarah e diz: “Bom, é o meu trabalho. Mediação, direitos humanos. Trabalhamos para apoiar vítimas cujos direitos fundamentais, garantidos pela constituição, foram violados.”, ao que Sara responde: “Tem um trabalho engraçado. É um trabalho que não existe sobre uma coisa que não existe.”
Yeşim – Isto é algo que sentimos de forma aguda na Turquia, porque o sistema jurídico mudou: tínhamos um parlamento com primeiros-ministros e agora temos um regime presidencial. É como uma contra-revolução que aconteceu após a fundação da república de Ataturk. O Ministério do Direito foi muito afectado. Portanto, temos um problema na Justiça: muitos advogados e tribunais são muito afectados pela política e não sentimos sequer que haja justiça na Turquia. É semelhante ao que aconteceu nos EUA: elegeram Trump para presidente, mesmo sabendo que ele foi acusado de violação. Todas estas desigualdades e injustiças afectam as pessoas também a nível psicológico. Se não tivermos a ideia ou o sentimento de justiça, estamos perdidos, de alguma forma.
Ana – Abraão diz: “vivo num país muito rico! Tão rico que até os artistas são ricos, mas mesmo assim, é tão difícil ser artista!”. Qual é o ponto a ser criticado aqui?
Yeşim – Sentimo-lo a toda a hora, e Abraão está a criticá-lo. Quando viajamos para Londres ou para o Porto, é claro que sentimos que as pessoas também têm problemas nesses lugares. Mas quando se vem de um país que está perto do Médio Oriente, ou de outra realidade, essa realidade torna-se, por vezes, absurda para nós. É do género: “ok, tens um problema no que toca a sustentar-te enquanto artista; um país onde o apoio do governo é quase nulo ou inexistente no que diz repeito à criação e sustentabilidade de um teatro”. É como se fosse uma paródia, uma ironia, de alguma forma. Uma crítica ao facto de estarmos demasiado envolvidos em nós próprios quando enfrentamos um trauma e outros tipos de massacres e guerras; uma crítica ao facto de não sermos muito empáticos enquanto artistas.