Estás na rua, apenas de passagem, e reparas numa janela que te parece diferente; que tem o vidro forrado de manuscritos, a sugerir que alguém aí os colocara por uma razão. Ficas curioso. Vês uma porta e decides entrar. Entras. Chegas a uma sala onde há sinais e pistas a indicar que alguém tem passado tempo a pensar e a re-imaginar este espaço. Vês um lago feito de tecido. Escutas um clarinete — um som que chega até ti na forma de uma língua nova. Perguntas-te quem será uma das pessoas que vês à beira do lago, aparentemente apenas olhando a sua superfície, mas o lago fala-te, como se a invocar histórias de família que vêm de um lugar mais fundo que ele; de um lugar permeável às “mágoas e tristezas inter-geracionais” do seu povo; mágoas e tristezas que jamais sentirás mas que a empatia e o poder de relativismo cultural te permitem chegar mais perto; fazer um esforço por entender. Ela fá-lo para assim compreender melhor a história do país onde nasceu; perceber-se a si mesma – interrogar a sua existência.
Mais do que entrar numa sala, estás a entrar num lugar guardado na memória de quem vês, como se o chão que os teus pés pisam fosse, na verdade, o chão da memória de quem criou o espaço que és agora chamado a percorrer; no íntimo de quem te guiou por entre o complexo labirinto que é a nossa memória, convidando-te a entrar. Esclareço-te: a pessoa que vês é Hằng Hằng, a artista que chamámos no âmbito do programa InResidence2024, para n’ A Turma desenvolver ao longo de dois meses o projecto At the Pond’s Edge. Conversei com ela sobre o seu trabalho e sobre os seus temas fracturantes, que falam de memória, trauma, linguagem, patriarcado e arquivo, e que abaixo vos conto.
Ana — Como é que te iniciaste neste mundo?
Hằng Hằng — Nasci numa aldeia perto de Hanoi, onde não existem teatros ocidentais, apenas as épocas festivas tradicionais. Nesse pequeno palco comunitário, fui primeiramente introduzida às artes performativas tradicionais do Vietname, como Chèo (teatro popular), Cải Lương (reformed theater), e Quan họ (de música folk), com intérpretes que faziam serenatas a partir de barcos no lago da aldeia. Ainda me lembro da multidão a apertar-se, de ver toda a gente ansiosa por assistir ao espectáculo. Em pequena, ainda não compreendia bem os espectáculos, mas agora sinto-me afortunada por ter essas memórias — a imagem de formas de arte tradicionais que já não se ouvem por aí. Com o tempo, este palco transformou-se num espaço para actuações locais de crianças e residentes que, embora não fossem artistas profissionais, partilhavam a paixão pelas artes do espectáculo.
O meu primeiro encontro com o teatro ocidental veio quando estudei Cenografia e vivi em Paris, onde descobri várias formas de arte, incluindo as artes performativas.
Considero-me uma pessoa tímida. Não estou confortável com o meu corpo nem a falar com outras pessoas — mas é por isso que tento encontrar as minhas próprias maneiras de criar nas artes performativas.
Ana — Que transição ocorreu quando te mudaste para Paris? Como foi este período?
Hằng Hằng — Cheguei a França com 19 anos, há quase 10. Passei os dois primeiros anos a explorar várias formas de arte, incluindo design, artes performativas e artes visuais, ao mesmo tempo que me preparava para o exame de entrada na escola. Depois, estudei Cenografia na École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs (ENSAD), focando a cenografia para teatro, mas também para museu, cinema e eventos. Apesar disso, não me vejo apenas enquanto cenógrafa, mas sim enquanto artista, interessada em explorar a interferência entre artes performativas e performance. Esta foi uma fase importante para mim, que me permitiu experimentar, ganhar experiência na prática artística e abraçar a independência.
Ana — Como é que explicarias a diferença entre artes performativas e arte da performance a quem não sabe?
Hằng Hằng — Acho que a principal diferença incide na forma pela qual o corpo é percepcionado em cada forma. Nas artes performativas — como teatro, dança, música e ópera — o corpo, a voz ou a presença servem como principal meio de expressão, criando personagens, histórias e movimento. Por outro lado, na arte da performance, como parte da arte visual, o corpo é tratado enquanto sujeito e objeto. Muitas vezes, ultrapassam-se os limites, incentiva-se a interação do público e interage-se diretamente com as realidades sociais, normalmente in situ.
Há várias definições que vêm evoluindo com o tempo, e as fronteiras entre elas estão a tornar-se incrivelmente fluidas.
“Eu espero que a minha micro-história ressoe nos outros. (...) O meu trabalho artístico é sobre trauma subtil e silencioso.”
Ana — No teu trabalho anterior, vens explorando os traumas inter-geracionais do povo vietnamita, que sofreu guerras, conflitos violentos, deslocações e uma cultura de patriarcado. Quando é que começaste a questionar estes assuntos?
Hằng Hằng — A palavra “trauma” parece tão pesada quando penso sobre ela. Estou ainda à procura de outras palavras para descrever o meu trabalho — talvez mágoas ou tristezas inter-geracionais (?)
Tudo isto começou com uma história que o meu avô contou sobre a história da nossa casa de família. A forma pela qual ele a contou fá-la parecer mais um conto de fadas que um trauma, e isso motivou-me a querer aprender mais sobre a minha existência, sobre a minha família e sobre o Vietname. Espero que a minha micro-história ressoe nos outros.
O trauma pode assumir muitas formas. Pode manifestar-se enquanto algo pesado à superfície, enquanto que, noutros casos, permanece silencioso, aparentemente invisível, recusando explicações, mas inegavelmente presente. A minha família é calma, mas consigo sentir a tristeza transmitida através das gerações - talvez seja apenas fruto da minha imaginação, mas confio na minha sensibilidade. O meu trabalho artístico é sobre trauma subtil e silencioso.
“As guerras no Vietname acabaram (...) mas os seus efeitos persistem — eles infiltram-se na minha língua e na minha voz, moldando-me para sempre.”
Ana — Cada cultura tem as suas próprias experiências de trauma, com as suas características particulares — no caso da história portuguesa, há ainda um trauma colectivo que remete para o tempo de ditadura. Achas importante discutir-se trauma, aqui? Cruzar essas experiências de trauma?
Hằng Hằng — Acho que é importante que se fale disso no Porto como em qualquer lugar — até com pessoas saturadas ou cansadas de o discutir. As guerras no Vietname acabaram, e eu cheguei a pensar que isso seria irrelevante para a minha geração, e mesmo a evitar conversar sobre o assunto. Mas os seus efeitos persistem, hoje – eles infiltram-se na minha língua e na minha voz, moldando-me para sempre. E o conflito persiste noutras partes do mundo.
A minha história é apenas um pixel de uma imagem maior; meramente uma voz e um fragmento da verdade. É essencial escutar vozes de diferentes gerações, línguas e perspectivas, expressas de diferenças formas — especialmente em países dominantes.
Quero citar uma frase do livro Women, native, other, de Trinh T. Minh Ha: “A história tem de ser contada, e não pode haver mentiras”.
Ana — Acho que é importante mapear e identificar traumas diferentes, com base em histórias diferentes. Estas perspectivas sobre trauma são algo que se estuda no Vietname? Que está presente nos livros de História?
Hằng Hằng — As histórias que vêm nos livros ou em fontes oficiais não formam a “imagem completa”. Não podemos tratá-las como fixas ou absolutas. Precisamos de perspectivas diferentes para chegar a uma compreensão mais completa. É por isso que trabalho com história oral e micro-história.
Ana — Focando At the Pond’s Edge: esta imagem de um lago é algo que vem de uma memória antiga? É a primeira vez que a incluis no teu trabalho artístico?
Hằng Hằng — Esta é a primeira vez que trabalho com a imagem de um lago, mas ela tem estado sempre presente na minha memória. Entrar na vila e passar pelo lago fez parte do meu caminho diário de regresso a casa. O lago era também um lugar onde eu brincava com os meus amigos de infância - os ecos da memória, os ecos do som, chamando alguém para que viesse, para que aí nos encontrássemos: “espero por ti no lago; à beira do lado.”
Ana — O lago como um ponto de encontro. Será também uma metáfora para as tuas memórias / para a tua infância?
Hằng Hằng — Sim, é um ponto de encontro com outros, mas também um ponto de encontro comigo. Adoro passar tempo sozinha no lago, sem fazer nada - apenas a observar a superfície, o que o rodeia, e a ouvir os sons. É um espaço raso onde a luz pode entrar, o que por vezes me permite ver ainda mais fundo.
“Quero convidar o público a reflectir sobre o poder da língua e sobre como ela é moldada por legados coloniais, conflitos e convulsões contemporâneas”
Ana — E esta imagem específica de duas mulheres à beira do lago, de onde vem?
Hằng Hằng — O som e a linguagem desempenham um papel crucial nesta performance. Duas mulheres, à espera uma da outra na margem do lago, falam em línguas diferentes. As suas vozes e línguas aparecem separadamente ou em paralelo, com uma potencialmente ecoando a outra. Aqui não se fala português e o público será colocado no meu lugar - como um estrangeiro dentro da performance. Quero convidar o público a reflectir sobre o poder da língua e sobre a forma como esta é moldada por legados coloniais, conflitos e convulsões contemporâneas.
Ana — O que é que te fez começar a trabalhar neste projecto sobre a língua, em particular sobre a língua nacional vietnamita? Quais foram os teus pensamentos iniciais?
Hằng Hằng — Comecei por pensar sobre a língua através da minha experiência de precisar constantemente de aprender línguas novas. Se as pessoas vierem ao Vietname e falarem inglês, eu tenho de aprender inglês para comunicar com elas. Mas, se eu viajar para outro país, não há qualquer expetativa de que as pessoas falem vietnamita. Isto levou-me a questionar o poder da língua e os desafios da tradução, particularmente a forma pela qual a língua resiste à tradução.
Desta vez, pergunto a mim mesma: de onde vem a língua que eu falo? E aí percebi: é uma questão complexa.
Decidi ir a Lisboa e visitar a Biblioteca da Ajuda. Aí encontrei manuscritos e cartas do Padre Francisco de Pina, o missionário jesuíta português a quem se atribui a criação da primeira escrita romanizada do vietnamita para representar a língua falada, substituindo uma escrita mais antiga, baseada em ideogramas chineses. Descobri também outros arquivos dos missionários Gaspar do Amaral e Alexandre de Rhodes. Estou grata pela oportunidade de consultar estes arquivos e de tirar proveito do estudo científico da língua.
No entanto, não estou certa se deva encarar a transição da minha língua como um progresso cultural ou uma agressão cultural. Este é apenas o início da minha investigação, e esta história parece não ter fim.
Ana — No final de Novembro, vais apresentar uma amostra do que tens vindo a desenvolver durante este tempo em residência n’ A Turma. O que podemos esperar desse momento?
Hằng Hằng — Este trabalho é desenhado não apenas à luz do que imaginei, como também dos arquivos que estudei. Espero trazer as pessoas para o meu espaço imaginativo através da poesia, do tecido, do som e das narrativas, ao mesmo tempo que as encorajo a reflectir sobre o seu próprio espaço. Não quero que as pessoas se limitem a ficar no chão e a perceber a história tal como ela é; quero que elas voem, também.
Ana — Nesta performance há uma dimensão poética que se enreda noutras expressões artísticas. Daquilo que sei, a combinação de diferentes formas de arte é algo que costumas fazer. Quais são os desafios de combinar estas diferentes linguagens? Como é que a Poesia se liga ao conceito de arquivo e te ajuda a falar sobre estes temas?
Hằng Hằng — A poesia, juntamente com as práticas manuais e visuais no espaço, guia-me para uma imaginação poética que outras formas nem sempre me permitem exprimir plenamente. Enquanto isso, os arquivos ajudam-me a compreender o contexto e a história do que estou a investigar. O desafio está em fazer escolhas, pois tenho muitas opções à minha disposição. Estou a aprender a escolher e, acima de tudo, a lembrar-me de que não preciso de expressar tudo num só trabalho - tenho tempo para isso.
Ana — Achas que este tipo de fundos ou oportunidades de ir para outro lugar e desenvolver um trabalho artístico são importantes? Neste caso, qual foi a importância desta bolsa para o desenvolvimento do teu trabalho?
Hằng Hằng — A parte interessante de ir para outros países é que é como respirar ar fresco para a criatividade e tornar-se mais adaptável a situações imprevistas. Há sempre perspectivas diferentes; formas diferentes de falar e de trabalhar. Tenho novos amigos, escuto português e experimento diferentes ambientes, paisagens e a arquitetura de figuras como Siza Vieira e Souto Moura.
Aqui, n'A Turma, não há pressão. Tenho a black box e a white box para trabalhar, um sítio para descansar, tempo e apoio financeiro para fazer o que quero. Posso trabalhar neste espaço calmo, mas também posso ir lá para fora, para a praia, por exemplo; trabalhar e reflectir.
Ana — Sobre o workshop de cianotipia e as técnicas de blueprinting: é algo em que já trabalhaste no passado?
Hằng Hằng — Fiz alguns workshops em Paris para adultos e crianças com diferentes técnicas, incluindo a cianotipia. Quero propor ao público d' A Turma uma cianotipia experimental porque esta técnica também está relacionada com o trabalho que aqui estou a desenvolver. A partir do manuscrito e do mapa, quero encontrar uma forma de reproduzir o arquivo e interessa-me o processo da cianotipia: preparar, reunir materiais, aplicar produtos químicos, secar, expor à luz do sol, lavar, secar de novo e, finalmente, aplanar. Este processo tanto reproduz os documentos como está aberto a perturbações: calcula-se a quantidade de químicos, considera-se o processo de criação, o tempo sob a luz do sol, e depois aparece de uma forma que não podemos controlar totalmente.
Ana — Há uma alusão ao equilíbrio, porque a imagem final depende da quantidade de tinta que se coloca.
Hằng Hằng — Sim, sabemos o que queremos, mas ao mesmo tempo não sabemos exactamente.
Ana — Isso é tão bonito. Colocamos o futuro nas mãos da natureza.