Contexto
Há peças que não terminam com o fechar das cortinas. Algumas prolongam-se no tempo, atravessam novas geografias e expandem-se para além do palco, fixando-se na palavra escrita. O Salto + Sul, o primeiro volume da Coleção de Teatro A Turma, reúne dois textos de Tiago Correia que, em conjunto, constroem um díptico teatral sobre errância, fronteiras e os ecos da memória.
O Salto, estreado em setembro de 2023 no Teatro Carlos Alberto (TeCA), leva-nos até ao início dos anos 70 e acompanha um grupo de emigrantes clandestinos, entre eles Leonel, um homem preso entre a sobrevivência e o peso das suas escolhas. Já Sul, que agora sobe a palco, reencontra essa mesma figura anos mais tarde, numa outra geografia e temporalidade, confrontada com o passado que nunca se dissipou por completo.
A coleção nasce da vontade de pensar o teatro para além da sua efemeridade, oferecendo um espaço onde dramaturgia e literatura se encontram, onde o texto se torna um objeto que pode ser lido, relido e interpretado de novas formas.
O momento da inauguração do primeiro volume acontecerá já dia 1 de Março, na Livraria Poetria, às 16h30 e conta com a presença do autor, Tiago Correia, e Regina Guimarães, propondo um espaço de partilha entre teatro e literatura, onde a dramaturgia se assume não apenas como registo da cena, mas como território de pensamento e de resistência.
Na conversa que se segue, com Tiago Correia, exploramos as ideias que sustentam este primeiro volume, O Salto + Sul, e o que significa criar e pensar esta coleção.
O lançamento de uma coleção de teatro é sempre um gesto que ultrapassa a simples publicação de textos, acaba por ser uma afirmação sobre a importância da dramaturgia enquanto objeto de reflexão e permanência. Porquê lançar esta coleção de teatro?
A Turma sempre foi reconhecida por desenvolver um trabalho sobre e a partir da palavra, produzindo não apenas textos dramáticos de autores contemporâneos que, na maioria dos casos, nos foram dados a conhecer através de traduções e publicações em Portugal, mas também novas dramaturgias, das quais somos autores. Temos desde sempre uma grande admiração pelas editoras que cometem a loucura de publicar teatro e há vários anos que tínhamos este desejo de lhes seguir os passos.
Nos últimos anos têm-se somado os textos originais resultantes das nossas criações teatrais (muitos deles editados em Portugal e traduzidos e publicados no estrangeiro através de parcerias editoriais pontuais) com novíssimos textos de outros autores cúmplices d’A Turma, escritos nas residências artísticas que acolhemos anualmente, ou através de protocolos de colaboração internacional, dos quais se destaca o projeto Writing On New Realities, desenvolvido com a GalataPerform (Turquia) e cuja primeira edição culminou no final de 2024, com 4 novos textos dramáticos de 4 diferentes autores. Assim, pareceu-nos o momento ideal para concretizarmos este desejo antigo, com uma coleção em que se espera poder reunir não só os nossos próprios textos, mas também novas traduções de dramaturgia estrangeira que de algum modo a nós esteja associada.
Através de uma parceria com a Húmus, uma das editoras que mais se destaca ao nível nacional pela aposta que faz na publicação de teatro (responsável, por exemplo, pela edição da coleção de teatro do Teatro Nacional São João), planeamos lançar novos números todos os anos, passando a fazer parte das prateleiras dos que são, como nós, amantes da literatura dramática.
O primeiro livro é o díptico das peças O Salto e Sul. O que significa reunir estes dois textos num mesmo volume?
Em primeiro lugar, significa a concretização de uma missão, no sentido em que simboliza e celebra o culminar de um longo projeto de escrita e criação. Estas peças são duas partes de uma só narrativa, que atravessa mais de 50 anos da nossa história recente, até aos dias de hoje. É uma espécie de salto entre tempos, em que começamos por olhar para o passado para depois nos confrontarmos com o presente. As peças foram pensadas para poderem existir e acontecer autonomamente, mas colocadas num mesmo volume não há como escapar à realidade: são uma coisa só. Uma só peça em duas partes.
O Salto e Sul são peças que dialogam entre si, mas não se limitam a uma continuação linear. Como vês a relação entre as duas? Podemos dizer que são espelhos deformados uma da outra?
Sem dúvida. Na verdade, é como se cada uma delas contivesse dentro de si a outra, a cada instante, como se cada uma refletisse continuamente a outra.
É como se estivéssemos entre dois espelhos. De um lado vemos aquilo que fomos e de onde vimos, enquanto do outro vemos aquilo em que nos tornámos e para onde vamos.
O teatro é, por definição, um espaço de presença, onde o público se confronta diretamente com o que acontece em cena. Como imaginas que a experiência de leitura destes textos pode ser diferente da experiência de vê-los em palco?
Será certamente diferente. Se o espetáculo permite um acesso muito mais imediato à vida que a peça contém, a leitura dos textos permite imaginar e aprofundar muito mais a nossa relação com a obra. Ao ponto de podermos questionar as opções que foram tomadas no espetáculo. É um dos desafios inalcançáveis de um(a) intérprete, conseguir representar tudo o que uma personagem representa. É por isso que a experiência de ir ao teatro ver um espetáculo não substitui a leitura da peça. Vão ser experiências muito diferentes. Por outro lado, no teatro, a experiência coletiva do espetáculo, a sua vivência, pode ser muito mais avassaladora, transformadora, reveladora e inesperada.
A leitura de teatro exige dos leitores, porque temos de ver o que se passa para lá do que está escrito.
Quando se lê uma peça, é-se simultaneamente encenador, ator, cenógrafo, figurinista, desenhador de luz, compositor, realizador. Uma peça é como um enigma. Normalmente a chave para o entendimento de uma peça encontra-se no fim. Por isso a leitura de teatro exige várias leituras. A vantagem é que se lê mesmo muito rápido.
Este é apenas o primeiro volume, mas já estão a pensar em planos futuros. É possível revelar qual será o próximo número da coleção?
Há várias coisas que gostávamos de publicar ainda este ano, nomeadamente os dois textos turcos que resultaram da primeira edição do Writing On New Realities e que já foram apresentados em estreia absoluta no formato de Leitura Encenada, em dezembro, no Mosteiro São Bento da Vitória. São dois textos novíssimos – Delirium Aksak, de Yeşim Özsoy e Adormeci em frente à televisão a pensar na origem da propriedade privada, acordei com a voz do meu pai, de Ferdi Çetin -, traduzidos para português por Bengi de Sá Matos Paixão, e que serão publicados em primeira mão por nós. Por sua vez a GalataPerform (Istambul) e a editora Habitus Kitap preparam uma publicação turca dos textos que eu e o António Afonso Parra escrevemos no âmbito do mesmo projeto: Duman (Fumo) e Deneyim (A Experiência), respetivamente.
Para saber mais sobre Sul, clique aqui.