Integrada no programa In Residence 2021, A Turma recebeu, em residência artística, o dramaturgo e pedagogo José Manuel Mora, para desenvolver um trabalho de investigação e criação cénica e dramatúrgica, ao longo de dois meses, no Porto, tendo em vista a criação de um novo texto dramático, livremente inspirado em Satyricon de Petrónio.
No âmbito da sua residência n’A Turma, realizou um Laboratório de Criação para atores, bailarinos e dramaturgos, profissionais ou estudantes, com o objetivo de partilhar, criar, recriar, construir e desconstruir alguns dos fragmentos mais significativos do texto em construção, bem como os impulsos e os conceitos que deram origem à escrita desses fragmentos. Desta forma, os participantes, foram parte ativa do processo de criação, naquela que foi uma troca profícua entre o criador pedagogo e os participantes.
"Poderíamos dividir a minha estadia artística na cidade do Porto em duas fases: na primeira, estava a escrever um texto para a fase com base na proposta apresentada: uma versão gratuita do Satiricon de Petrónio baseada no conceito de Zygmunt Bauman de "os párias da modernidade". Esta fase do trabalho foi exclusivamente individual, e a residência e a empresa forneceram-me o contexto, o cuidado e as ferramentas necessárias para poder escrever com base na inspiração recebida da própria cidade e dos seus espaços mais emblemáticos.
A segunda fase consistiu em partilhar com os artistas participantes no workshop alguns dos materiais da minha escrita e do seu processo de construção. O meu objectivo era dar-lhes o espaço para intervir sobre o material em si e, desta forma, conhecer a sua opinião sobre o material. Espero que desta forma se possa estabelecer um verdadeiro
diálogo entre o artista-em-residência e os artistas da cidade. Chamámos ao workshop "Cartografia Emocional do Submundo do Porto", e teve lugar na última semana de Setembro no espaço de ensaios da companhia A Turma, com a estreita colaboração do encenador e actor Tiago Correia, da produtora Mafalda Bastos e da figurinista Sara Miro. O objectivo do workshop era explorar os espaços residuais dentro da cidade que são habitados por indivíduos que podem ser considerados "párias da Modernidade", resíduos humanos do progresso que vivem num espaço limite entre o visível e o invisível, a fim de observar e desenvolver experiências que possam ser úteis para a escrita do texto.
Um dos pontos de partida foi o texto do Satiricon de Petrónio, assim como a leitura do ensaio Vidas desperdiciadas: Modernidade e os seus párias pelo sociólogo polaco Zygmunt Bauman. Dada a natureza multidisciplinar do laboratório, diferentes perfis artísticos puderam participar, independentemente da experiência de cada um deles. Por conseguinte, contamos com a participação de actores e actrizes, jornalistas, bailarinos e mesmo pessoas da teoria e história da arte ou literatura. Os nomes dos participantes são os seguintes: José Pedro Pereira, Gonçalo Ribeiro, Sandra Dias, João Mendes, Catarina Mansinho dos Santos, Carlos Deusodeu, Sérgio Brito e Belisa Branças.
O nosso objecto de estudo durante o laboratório foi a possibilidade de uma escrita que emergiu da memória das nossas próprias experiências pessoais, prestando atenção à narração das memórias e à observação dos acontecimentos que ocorreram à nossa volta e que nos impactaram ao ponto de modificar o nosso trabalho ou a nossa forma de pensar. Assim, concentrámo-nos no trabalho que os participantes realizaram com base nas suas memórias, experiências na cidade do Porto e encontros com eventos reais no espaço público. Implícita neste processo de trabalho está uma visão da arte baseada na escuta do ambiente, a fim de extrair histórias e materiais directamente da realidade.
Eis algumas das conclusões a que chegámos após a exposição pública: em primeiro lugar, somos confrontados com uma ideia de arte como um encontro entre o artista e o mundo, o que exige uma atitude de escuta e observação permanente do ambiente e da memória pessoal e introspectiva de cada um. Durante a semana do workshop reflectimos muito sobre a seguinte questão: "é o tema que provoca a realidade para que o trabalho artístico surja dela ou, pelo contrário, é o trabalho já no mundo e o trabalho do artista é apenas encontrá-lo e enquadrá-lo?". No seminário reflectimos também sobre a noção de "acontecimiento" como um "evento" que traz consigo uma crise e, portanto, uma mudança na direcção do nosso pensamento e que desconstrói os nossos esquemas mentais anteriores. O evento, então, gera uma interferência emocional que nos apresenta um dilema, um conflito que só pode ser resolvido através da expressão artística. O trabalho do artista, então, seria o do praticante de uma atitude de escuta do mundo a fim de captar os acontecimentos que ocorrem nas nossas vidas a fim de os observar - sem intervir neles, obviamente - e tomar nota dos mesmos. Desta forma, a expressão artística envolve-nos emocionalmente como criadores, forçando-nos a posicionarmo-nos. Assim, a forma artística que o criador escolhe utilizar revelará a relação entre o evento vivido e a sua própria subjectividade. Por outro lado, a memória e a recordação foram também grandes fontes de material artístico. No workshop fizemos muita pesquisa sobre o acesso à memória emocional, quer através de listas de coisas que perdemos na vida, listas de coisas e momentos de que nos envergonhámos, quer através de histórias de lugares na cidade do Porto que foram importantes para nós. A recordação e a memória, então, permitiram-nos gerar material artístico genuíno derivado da história pessoal de cada um dos participantes. Assim, através das suas histórias e memórias, a cidade revelou-se para nós como um verdadeiro palimpsesto que integra a memória do passado com a modernidade do presente."
José Manuel Mora foi dramaturgo convidado do prestigiado Royal Court Theater, em Londres, e do Berliner Festspiele e Theatertreffen, em Berlim, para referenciar alguns. A sua obra dramática encontra-se traduzida em inglês, francês, italiano, alemão, português, polaco e sérvio, tendo sido apresentada um pouco por todo o mundo - recebeu o Prémio Max de Melhor Espetáculo Revelação de 2015, com a peça Los Nadadores Nocturnos, entre outros. Incorpora, enquanto pedagogo, a direção da Escola Superior de Arte Dramática de Castela e Leão, no qual é responsável pela implementação do Mestrado em Ensino Artístico, Pensamento e Criação Cénica Contemporânea.
© Tiago Correia